Por: Rui Jorge Martins
Uma «encíclica social»: é com estas palavras que o papa define o documento “Todos irmãos”, que assinou neste sábado, em Assis, no túmulo de S. Francisco, no qual acentua a nobreza de cada pessoa e reitera que «a inclusão ou exclusão da pessoa que sofre na margem da estrada define todos os projetos econômicos, políticos, sociais e religiosos», o que implica a crítica à desregulação dos mercados econômicos e financeiros, a apologia do perdão, a garantia da liberdade religiosa e, por fim, a exaltação da figura do Beato Charles de Foucauld.
«Todo o ser humano tem o direito de viver com dignidade e desenvolver-se integralmente, e nenhum país lhe pode negar este direito fundamental. Todos o possuem, mesmo quem é pouco eficiente porque nasceu ou cresceu com limitações. De fato, isto não diminui a sua dignidade imensa de pessoa humana, que se baseia, não nas circunstâncias, mas no valor do seu ser. Quando não se salvaguarda este princípio elementar, não há futuro para a fraternidade nem para a sobrevivência da Humanidade», acentua Francisco, que propõe aos políticos grandes linhas orientadoras de ação, na convicção de que, por inacreditável que possa parecer, «na política, há lugar também para amar com ternura».
O texto constata que «os migrantes não são considerados suficientemente dignos de participar na vida social como os outros, esquecendo-se que têm a mesma dignidade intrínseca de toda e qualquer pessoa. (…) Nunca se dirá que não sejam humanos, mas na prática, com as decisões e a maneira de os tratar, manifesta-se que são considerados menos valiosos, menos importantes, menos humanos».
O papa classifica de inaceitável» a atitude dos cristãos que fazem «prevalecer determinadas preferências políticas em vez das profundas convicções da sua própria fé: a dignidade inalienável de toda a pessoa humana, independentemente da sua origem, cor ou religião, e a lei suprema do amor fraterno».
«O paradoxo é que, às vezes, quantos dizem que não acreditam podem viver melhor a vontade de Deus do que os crentes», escreve Francisco, apontando para «aqueles que parecem sentir-se encorajados ou pelo menos autorizados pela sua fé [cristã] a defender várias formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos àqueles que são diferentes».
Com efeito, «há crentes que pensam que a sua grandeza está na imposição das suas ideologias aos outros, ou na defesa violenta da verdade, ou em grandes demonstrações de força. Todos nós, crentes, devemos reconhecer isto: em primeiro lugar está o amor, o amor nunca deve ser colocado em risco, o maior perigo é não amar».
«Criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o «meu» mundo; e muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável, passando a ser apenas “os outros”»
«Senti-me especialmente estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem me encontrei, em Abu Dhabi, para lembrar que Deus “criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos”», escreve Francisco na encíclica, composta por oito capítulos e 287 números.
Além de desenvolver alguns dos grandes temas expostos no texto “A fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum”, a nova encíclica, revelada hoje, 4 de outubro, dia que em que liturgia católica evoca S. Francisco de Assis, resulta do acolhimento de «numerosas cartas e documentos» que o papa recebeu «de tantas pessoas e grupos de todo o mundo».
Francisco anota que as páginas da encíclica «não pretendem resumir a doutrina sobre o amor fraterno, mas detêm-se na sua dimensão universal, na sua abertura a todos», começando por se deter em «algumas tendências do mundo atual que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal».
O texto constata que «um projeto com grandes objetivos para o desenvolvimento de toda a humanidade soa como um delírio», «aumentam as distâncias» entre as pessoas, «e a dura e lenta marcha rumo a um mundo unido e mais justo sofre um novo e drástico revés».
A cultura «vazia, fixada no imediato e sem um projeto comum», caracteriza-se pelo «descarte mundial», que se reflete no desprezo por nascituros e idosos, o privilégio pelo individualismo que enfraquece a dimensão comunitária da existência, a rendição da política aos poderes econômicos transnacionais, e o silenciamento das vozes que se erguem em defesa do ambiente. «O princípio “salve-se quem puder” traduzir-se-á rapidamente no lema «todos contra todos», e isso será pior que uma pandemia.»
«Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras»
A encíclica denuncia a «obsessão por reduzir os custos laborais sem se dar conta das graves consequências que provoca, pois o desemprego daí resultante tem como efeito direto alargar as fronteiras da pobreza», a par do reaparecimento de «formas abjetas» de exclusão, que se julgavam «já superadas, como o racismo»,
«Constata-se que, de facto, os direitos humanos não são iguais para todos», e um dos muitos exemplos é «a organização das sociedades em todo o mundo, [que] ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens».
Por outro lado, «criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o «meu» mundo; e muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável, passando a ser apenas “os outros”».
«Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras. Embora a tenha escrito a partir das minhas convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade», assinala.
Para o cardeal Tolentino Mendonça, deseja-se que este «texto urgente e inovador encontre leitorados amplos, dentro e fora da Igreja, capazes de refletir em profundidade o significado dos seus desafios».
«Quem tem ouvidos para ouvir, ouça este apelo “a repensar os nossos estilos de vida, as nossa relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência”», observa, na mais recente crônica semanal no “Expresso”.
Além de estar disponível na internet, o texto pode ser adquirido a partir de amanhã, em versão impressa, nas edições da Paulinas, Paulus e Apostolado da Oração.
Por: Rui Jorge Martins/SNP Cultura
Imagem: Papa Francisco assina a encíclica “Todos irmãos” | Assis, 3.10.2020 | © Sala de Imprensa da Santa Sé